O Humanismo em Portugal e a genialidade de Gil Vicente
O Humanismo foi um período de transição cultural e intelectual que marcou a passagem da Idade Média para a Idade Moderna em Portugal, aproximadamente entre meados
do século XV e a metade do século XVI. Este movimento, influenciado pelo Renascimento italiano, colocou o ser humano (o Homem) no centro das reflexões (antropocentrismo), substituindo gradualmente a visão
teocêntrica medieval, onde Deus era a medida de todas as coisas.
Em Portugal, o Humanismo coincidiu com a época áurea dos Descobrimentos, um fator que moldou profundamente a sua expressão. A expansão marítima trouxe não
apenas riquezas, mas também um contacto com novas culturas, povos e saberes, alargando os horizontes mentais dos portugueses. Este foi um tempo de efervescência, onde a fé religiosa convivia com um nascente
espírito crítico e uma crescente valorização da razão e do conhecimento empírico.
Características do Humanismo português
> Valorização da língua vernácula: o português afirmou-se definitivamente como língua de cultura, rivalizando e até substituindo o latim
em documentos oficiais e obras literárias. A publicação do “Cancioneiro Geral” de Garcia de Resende (1516) é um marco, compilando a poesia palaciana da época.
> Desenvolvimento da prosa: surgiram obras de historiografia, cartas e tratados que refletiam uma nova forma de observar e relatar o mundo. A “Crónica de D. João
I” de Fernão Lopes, ainda no pré-humanismo, é um exemplo pioneiro de prosa objetiva e humanizada. Mais tarde, Damião de Góis tornou-se um dos grandes humanistas portugueses, com uma
visão crítica e cosmopolita.
> Impressão e divulgação do saber: foi estabelecida a primeira impressora em Portugal, em 1487, por judeus expulsos de Espanha. Esta tecnologia foi crucial para
a disseminação de ideias e a fixação dos textos em português.
> A erudição clássica: os estudiosos portugueses mergulharam nos autores clássicos gregos e romanos, buscando inspiração na sua filosofia, literatura
e arte.
Gil Vicente:
o espelho da sociedade em transição
É no campo do teatro que o Humanismo português encontra a sua expressão mais popular, complexa e genial: Gil Vicente. Apelidado de “Pai do Teatro Português”,
a sua obra é o reflexo mais fiel do Portugal do seu tempo, funcionando como um verdadeiro retrato social, moral e crítico da era dos descobrimentos.
Gil Vicente não foi apenas um entretedor da corte dos reis D. Manuel I e D. João III. Foi um agudo observador que usou o palco como um laboratório para dissecar a sociedade
portuguesa em todas as suas camadas.
Principais características da sua obra
> A sátira social mordaz: Gil Vicente criticou impiedosamente os vícios e as hipocrisias de todas as classes sociais. Desde o clero corrupto e devasso (como o Frei da “Farsa
de Inês Pereira”), passando pela nobreza ociosa e vazia, até a burguesia ascendente e ambiciosa, ninguém escapou à sua pena afiada.
> A representação do povo: pela primeira vez, personagens populares – como camponeses, sapateiros, ciganas e soldados – ganharam voz e protagonismo no palco,
com diálogos repletos de expressões e sotaques regionais, captando a autenticidade da língua falada.
> A fusão do tradicional e do moderno: A sua obra é um amálgama única de elementos:
→ Medievais: A moralidade religiosa, a alegoria, o uso de autos (peças de temática sacra).
→ Renascentistas/Humanistas: O espírito crítico, a valorização do homem comum, a observação realista da sociedade, a influência
de autores clássicos como Plauto.
> A Linguagem: A genialidade de Gil Vicente está na adequação da linguagem a cada personagem. Um fidalgo fala de forma artificial e afrancesada, enquanto um lavrador
fala com rudeza e simplicidade. Esta característica faz das suas peças um documento inestimável sobre a língua portuguesa da época.
> A Visão crítica dos descobrimentos: em peças como o “Auto da Índia”, Gil Vicente aborda um tema novo: o impacto social da expansão. Mostra
as mulheres que ficavam para trás, a corrupção, a desilusão e as mudanças nos costumes trazidas pelo contacto com o Oriente, oferecendo uma perspectiva que vai além do triunfalismo
oficial.
Obras Principais: “Auto da Barca do Inferno”, “Farsa de Inês Pereira”, “Auto da Índia”, Auto da Alma, “O Velho da Horta”.
O Humanismo em Portugal foi, portanto, um período de abertura ao mundo e de questionamento. E Gil Vicente foi a sua voz mais poderosa e completa. Através do seu teatro, ele
capturou o espírito de uma nação em profunda mudança, equilibrando-se entre a fé e a razão, a tradição e a modernidade. Mais do que um dramaturgo, foi um cronista do
seu tempo, um moralista e um inovador que legou à posteridade um retrato imprescindível e vivo da sociedade portuguesa no alvorecer da Idade Moderna. A sua obra permanece não só como um marco fundador
da literatura dramática em língua portuguesa, mas também como um testemunho eterno da complexidade humana.