segunda-feira, 20 de março de 2023

Lima Barreto, trecho de Triste fim de Policarpo Quaresma e questões sobre o Pré-Modernismo

 


Nos dias atuais, Lima Barreto (1881-1922) é unanimemente reconhecido como um dos nossos maiores escritores. Mas, em sua época, Afonso Henriques de Lima Barreto sofreu duramente o preconceito racial.

Sua obra-prima é o romance Triste fim de Policarpo Quaresma (1911).

Abaixo, temos um trecho do capítulo III da segunda parte de Triste fim...

No trecho, o major Quaresma recebe a visita da afilhada Olga, de seu esposo, e do violonista Ricardo Coração dos Outros, amigo e professor de violão de Quaresma.

Olga voltava de um passeio ao Carico, onde havia uma cachoeira, a duas léguas do sítio do padrinho.

[...]

O que mais a impressionou no passeio foi a miséria geral, a falta de cultivo, a pobreza das casas, o ar triste, abatido da gente pobre. Educada na cidade, ela tinha dos roceiros ideia de que eram felizes, saudáveis e alegres. Havendo tanto barro, tanta água, por que as casas não eram de tijolos e não tinham telhas? Era sempre aquele sapê sinistro e aquele "sopapo" que deixava ver a trama de varas, como o esqueleto de um doente. Por que, ao redor dessas casas, não havia culturas, uma horta, um pomar? Não seria tão fácil, trabalho de horas?
E não havia gado, nem grande nem pequeno. Era raro uma cabra, um carneiro. Por quê? Mesmo nas fazendas, o espetáculo não era mais animador. Todas soturnas, baixas, quase sem o pomar olente e a horta suculenta. A não ser o café e um milharal, aqui e ali, ela não pôde ver outra lavoura, outra indústria agrícola. Não podia ser preguiça só ou indolência. Para o seu gasto, para uso próprio, o homem tem sempre energia para trabalhar. As populações mais acusadas de preguiça, trabalham relativamente. Na África, na Índia, na Cochinchina, em toda parte, os casais, as famílias, as tribos, plantam um pouco, algumas coisas para eles. Seria a terra? Que seria? E todas essas questões desafiavam a sua curiosidade, o seu desejo de saber, e também a sua piedade e simpatia por aqueles párias,
maltrapilhos, mal alojados, talvez com fome, sorumbáticos!…

Pensou em ser homem. Se o fosse passaria ali e em outras localidades meses e anos, indagaria, observaria e com certeza havia de encontrar o motivo e o remédio. [...]

Como no dia seguinte fosse passear ao roçado do padrinho, aproveitou a ocasião para interrogar a respeito o tagarela Felizardo. [...]

— Bons dias, "sá dona".

— Então trabalha-se muito, Felizardo?

— O que se pode.

— Estive ontem no Carico, bonito lugar… Onde é que você mora, Felizardo?

— É doutra banda, na estrada da vila.

— É grande o sítio de você?

— Tem alguma terra, sim senhora, "sá dona".

— Você por que não planta para você?

— "Quá sá dona!" O que é que a gente come?

— O que plantar ou aquilo que a plantação der em dinheiro.

— "Sá dona tá" pensando uma coisa e a coisa é outra. Enquanto planta cresce, e então? "Quá, sá dona", não é assim.

Deu uma machadada; o tronco escapou: colocou-o melhor no picador e, antes de desferir o machado, ainda disse:

— Terra não é nossa… E "frumiga"?… Nós não "tem" ferramenta… isso é bom para italiano ou "alamão", que governo dá tudo… Governo não gosta de nós…

Desferiu o machado, firme, seguro; e o rugoso tronco se abriu em duas partes, quase iguais, de um claro amarelado, onde o cerne escuro começava a aparecer.

Ela voltou querendo afastar do espírito aquele desacordo que o camarada indicara, mas não pôde. Era certo. Pela primeira vez notava que o self-help do Governo era só para os nacionais; para os outros todos os auxílios e facilidades, não contando com a sua anterior educação e apoio dos patrícios.

E a terra não era dele? Mas de quem era então, tanta terra abandonada que se encontrava por aí? Ela vira até fazendas fechadas, com as casas em ruínas… Por que esse acaparamento, esses latifúndios inúteis e improdutivos?

A fraqueza de atenção não lhe permitiu pensar mais no problema. Foi vindo para casa, tanto mais que era hora de jantar e a fome lhe chegava.

Encontrou o marido e o padrinho a conversar. Aquele perdera um pouco da sua morgue, havia mesmo ocasião em que era até natural. Quando ela chegou, o padrinho exclamava:

— Adubos! É lá possível que um brasileiro tenha tal ideia! Pois se temos as terras mais férteis do mundo!

— Mas se esgotam, major, observou o doutor.

Dona Adelaide, calada, seguia com atenção o crochet que estava fazendo; Ricardo ouvia, com os olhos arregalados; e Olga intrometeu-se na conversa:

— Que zanga é essa, padrinho?

— É teu marido que quer convencer-me que as nossas terras precisam de adubos… Isto é até uma injúria!

— Pois fique certo, major, se eu fosse o senhor, aduziu o doutor, ensaiava uns fosfatos…

— Decerto, major, obtemperou Ricardo. Eu, quando comecei a tocar violão, não queria aprender música… Qual música! Qual nada!
A inspiração basta!… Hoje vejo que é preciso… É assim, resumia ele.

Todos se entreolharam, exceto Quaresma que logo disse com toda a força d’alma:

— Senhor doutor, o Brasil é o país mais fértil do mundo, é o mais bem dotado e as suas terras não precisam "empréstimos" para dar sustento ao homem. Fique certo!

— Há mais férteis, avançou o doutor.

— Onde?

— Na Europa.

— Na Europa!

— Sim, na Europa. As terras negras da Rússia, por exemplo.

O major considerou o rapaz durante algum tempo e exclamou triunfante:

— O senhor não é patriota! Esses moços…

O jantar correu mais calmo. Ricardo fez ainda algumas considerações sobre o violão. À noite, o menestrel cantou a sua última produção: "Os Lábios da Carola". [...] Olga tocou no velho piano de Dona Adelaide; e, antes das onze horas, estavam todos recolhidos.

Quaresma chegou a seu quarto, despiu-se, enfiou a camisa de dormir e, deitado, pôs-se a ler um velho elogio das riquezas e opulências do Brasil.

A casa estava em silêncio; do lado de fora, não havia a mínima bulha. Os sapos tinham suspendido um instante a sua orquestra noturna. Quaresma lia; e lembrava-se que Darwin escutava com prazer esse concerto dos charcos.
Tudo na nossa terra é extraordinário! pensou. Da despensa, que ficava junto a seu aposento, vinha um ruído estranho. Apurou o ouvido e prestou atenção. Os sapos recomeçaram o seu hino. Havia vozes baixas, outras mais altas e estridentes; uma se seguia à outra, num dado instante todas se juntaram num uníssono sustentado. Suspenderam um instante a música. O major apurou o ouvido; o ruído continuava,
Que era? Eram uns estalos tênues; parecia que quebravam gravetos, que deixavam outros cair no chão… Os sapos recomeçaram; o regente deu uma martelada e logo vieram os baixos e os tenores. Demoraram muito; Quaresma pôde ler umas cinco páginas. Os batráquios pararam; a bulha continuava. O major levantou-se, agarrou o castiçal e foi à dependência da casa donde partia o ruído, assim mesmo como estava, em camisa de dormir.

Abriu a porta; nada viu. la procurar nos cantos, quando sentiu uma ferroada no peito do pé. Quase gritou. Abaixou a vela para ver melhor e deu com uma enorme saúva agarrada com toda a fúria à sua pele magra. Descobriu a origem da bulha. Eram formigas que, por um buraco no assoalho, lhe tinham invadido a despensa e carregavam as suas reservas
de milho e feijão, cujos recipientes tinham sido deixados abertos por inadvertência. O chão estava negro, e carregadas com os grãos, elas, em pelotões cerrados, mergulhavam no solo em busca da sua cidade subterrânea.

Quis afugentá-las. Matou uma, duas, dez, vinte, cem; mas eram milhares e cada vez mais o exército aumentava. Veio uma, mordeu-o, depois outra, e o foram mordendo pelas pernas, pelos pés, subindo pelo seu corpo.
Não pôde aguentar, gritou, sapateou e deixou a vela cair.

Estava no escuro. Debatia-se para encontrar a porta; achou e correu daquele ínfimo inimigo que, talvez, nem mesmo à luz radiante do sol o visse distintamente…

 

 

Refletindo sobre...

Completando o estudo do Pré-Modernismo, preparei algumas questões básicas:

 

1) Assinale V (verdadeiro) ou F (falso) para cada uma das afirmações abaixo:

a) O livro Eu, de Augusto dos Anjos, é, provavelmente, a obra de poesia mais lida em nosso país. ( )

b) No livro de contos Urupês, Monteiro Lobato retrata o impacto social provocado pelo declínio da cultura do café no interior de São Paulo. ( )

c) O Pré-Modernismo é um movimento literário criado pelos escritores Euclides da Cunha, Monteiro Lobato e Lima Barreto. ( )

d) Segundo Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade “continua sendo o grande caso singular da poesia brasileira”. ( )

e) Na poesia, temos dois grandes representantes do Pré-Modernismo: Augusto dos Anjos e Carlos Drummond de Andrade. ( )

f) O reflorescimento do nacionalismo e a busca de uma língua brasileira, mais próxima do povo, são duas das mudanças observadas na literatura brasileira do início do século XX. ( )

g) Entre os principais representantes do Pré-Modernismo na prosa, temos: Euclides da Cunha, Monteiro Lobato e Lima Barreto. ( )

h) Em seu livro Os sertões (1902), Euclides da Cunha confirmou a versão do exército brasileiro sobre a origem da guerra de Canudos: a necessidade de combater um foco monarquista que se opunha à recente República. ( )

i) Lima Barreto foi um dos primeiros escritores a retratar as camadas mais humildes da população brasileira. ( )

j) Costuma-se chamar Pré-Modernismo à produção literária situada entre 1900 e 1922. ( )

2)

A lágrima

Augusto dos Anjos

– Faça-me o obséquio de trazer reunidos
Cloreto de sódio, água e albumina…
Ah! Basta isto, porque isto é que origina
A lágrima de todos os vencidos!

 

-“A farmacologia e a medicina
Com a relatividade dos sentidos
Desconhecem os mil desconhecidos
Segredos dessa secreção divina”.

 

– O farmacêutico me obtemperou. –
Vem-me então à lembrança o pai Yoyô
Na ânsia física da última eficácia…

 

E logo a lágrima em meus olhos cai.

Ah! Vale mais lembrar-me eu de meu Pai
Do que todas as drogas da farmácia!

A respeito do poema, é incorreto afirmar:

a) Na última estrofe, o eu lírico questiona a eficácia da farmacologia e da medicina.

b) Além de consequência das aliterações presentes, a musicalidade do verso “Na ânsia física da última eficácia” é resultante principalmente da assonância dos fonemas /a/ e /i/.

c) A forma poética empregada pelo poeta - soneto com versos decassílabos - é bastante original para a época.

d) Na segunda estrofe, a fala do farmacêutico contesta a explicação simplista da lágrima a partir de sua composição química.

e) Apresenta elementos científicos, que é uma das características da poesia de Augusto dos Anjos.

 

3) Sobre o conto O homem que sabia javanês, assinale V (verdadeiro) ou F (falso) para cada uma das afirmações abaixo:

a) O conto critica a superficialidade das relações sociais, baseadas em supostos títulos acadêmicos e apadrinhamentos políticos. ( )

b) Um exemplo do apadrinhamento político apresentado no conto é a forma como o protagonista ingressa na diplomacia, a partir de uma solicitação feita ao Visconde de Caruru. ( )

c) O conto termina com o protagonista tornando-se um eminente bacteriologista. ( )

 

4) Com quais das manifestações literárias do século XIX, Triste fim de Policarpo Quaresma está mais alinhado?

( ) Romantismo ( ) Realismo

( ) Parnasianismo ( ) Simbolismo

Por quê?